O PER por quem o viveu: Testemunho, Diagnóstico, Proposta.


I _O PER em números:

Decorreram 30 anos sobre o PER – Programa Especial de Realojamento, que envolveu 28 municípios – 19 em Lisboa e 9 no Porto. Foi lançado para a erradicação das barracas e realojamento nas áreas metropolitanas (AM), onde seriam identificadas 48.416 famílias em construções precárias. Destas, mais de 33 mil viviam na AM de Lisboa. O programa teve um modelo de financiamento público, com 50% a fundo perdido dado pelo Estado e outros 50% de empréstimo aos municípios.  

Segundos dados recentemente divulgados, e começando pelo lado humano e pelas pessoas envolvidas, o processo deu lugar ao realojamento de mais de 32 mil famílias (32 333 agregados, contemplando 13 218 elementos identificados em 1993). Isto ao longo do perímetro nacional, e durante pelo menos 15 anos, na sequência do levantamento de necessidades realizado.

No caso específico de Lisboa, o Município tinha já em marcha desde 1987 um outro programa de habitação, o PIMP (Plano de Intervenção a Médio Prazo). Diante das necessidades detetadas e consciente da necessidade de reforçar este esforço, o Município começou em 1990 a reclamar do poder central um novo programa, considerando que apenas um investimento público significativo poderia permitir o acesso à habitação aos mais vulneráveis. 

Em 1993, seria então apresentado o PER, que implicou no seu acordo de adesão o Instituto de Gestão e Alienação do Património do Estado (IGAPHE), Instituto Nacional de Habitação (INH) e o Município de Lisboa.

No somatório dos programas (PIMP e PER) foi construído um total de 16 632 fogos. Aos 7496 edificados no PIMP, seguiram-se os 9135 fogos abrangidos pelo PER. A construção neste último programa incluiu 65 empreendimentos (25 promovidos diretamente pelo Município e 40 por aquisição). Ficariam por construir 4195 fogos do conjunto global inicialmente previsto.     

II _Contexto histórico pós-PER

A política de habitação sequente a este período de construção, em que Lisboa foi o maior promotor de habitação pública, seria condicionada pela falta de disponibilidade financeira do Município e pelo contexto de crise global que levou à intervenção da Troika no país. 

Só depois de recuperadas as finanças da Câmara de Lisboa, foi possível começar de novo a intervir, produzindo um Plano Local de Habitação e dando início à reabilitação dos Bairros Municipais – com mais de 52 milhões de euros para recuperação de 825 lotes, 7 mil frações e impacto direto na vida de 19 mil moradores. Um esforço premente pela passagem dos anos sem conservação e que visava abranger todo o património público municipal, avançando em paralelo com respostas para novas realidades e carências da população.

Foi assim lançada a construção de habitação pública de nova geração na Boavista, no Bairro Padre Cruz, no Bairro da Cruz Vermelha e na Avenida das Forças Armadas, no património disperso por toda a cidade, iniciar a manutenção de pátios e vilas, a aquisição da Vila Dias, mantendo aí os seus moradores, a compra de património da Segurança Social para renda acessível, pensar nas necessidades das classes de rendimentos intermédios, promover a reabilitação de um total de 8000 casas e afirmar estratégias como o Subsídio Municipal ao Arrendamento.

A emergência de diferentes necessidades e o atual contexto socio económico, posterior à pandemia e ao clima de conflito internacional, associado a fenómenos de circulação de pessoas e de trabalho à distância, levantam todos os dias e de forma crescente problemas no sector da habitação – cada vez mais sujeito a especulação. Acentuam, deste modo, a urgência de uma visão integrada e de estratégias em que a continuidade dos processos já começados se articule com o alargamento de respostas, considerando tanto o avolumar de carências como as novas molduras institucionais. 

É este o desafio a que não podemos fechar os olhos neste momento – em que temos pela primeira vez uma Lei de Bases da Habitação, conjugada com a abertura de novos instrumentos financeiros como o PRR (lembre-se que não havia antes do 1º D.to fontes de financiamento para habitação a que os municípios pudessem recorrer). Este conjunto único de possibilidades obriga-nos a lançar um olhar atento para o passado, analisar e tirar conclusões de forma a preparar o futuro. 

III _
O PER por quem o viveu: construção
de comunidade, visão de futuro

A propósito das comemorações dos 30 anos do PER, de modo a tirar conclusões e pensar nas realidades presentes, é fundamental, portanto, começar pelas pessoas que o viveram diretamente. Para os Cidadãos por Lisboa faltou até agora dar-lhes voz, falar e debater o processo PER com os moradores e na sequência projetar o futuro da habitação para prevenir os aspetos menos positivos deste programa, e continuar a ultrapassar as sequelas que deixou. 

Isto para construir, considerando estas dimensões, não apenas habitação, mas verdadeiras comunidades num novo desenho de cidade. Só através de mais habitação pública – obtida por construção direta, mas também pelos modelos cooperativo e de parceiras público / comuns – se podem introduzir mecanismos de regulação de mercado e dar respostas às necessidades atuais, num contexto urbano coeso e que não deixe ninguém para trás. 

“O PER por quem o viveu” surgiu assim como forma de promover com os residentes e nos bairros este debate, diagnosticando localmente necessidades e procurando articular propostas transversais, em discussão com associações de moradores e grupos comunitários, com entidades locais e com as próprias pessoas. 

A reflexão crítica conjunta pretende agora, neste documento síntese dos contactos e contribuições recolhidas em abril e maio nas várias visitas e debates feitos, contribuir para uma abordagem mais alargada do que deve ser o desenho da cidade – contributo ainda mais relevante neste momento de charneira, em que para lá do direito à habitação, deveríamos começar também a discutir o direito ao lugar. Passando assim da erradicação da pobreza, que foi o motivo inicial do PIMP e do PER, à noção de comunidade, numa cidade diversa mais coesa e inclusiva.

IV _
Testemunhos na 1ª pessoa dos moradores
recolhidos nas visitas feitas aos territórios 

IV.1 _O que aconteceu no passado, o cortar das raízes…

«Cortar laços com os vizinhos que tomavam conta dos filhos uns dos outros, foi o pior»

“Foi o momento mais marcante da minha vida, nós melhorámos na estrutura, mas perdemos no sentimento”

«Tivemos de esperar muitos anos por um autocarro que nos levasse ao Santa Maria»

«Muitas pessoas tinham medo de usar os elevadores. Para quem servia o interfone?»

«Não foram lançados programas de conservação das casas, que resolvessem problemas»

— Houve um desenraizamento das comunidades: falta de análise específica e acompanhamento social tanto no realojamento como nos períodos de instalação dos moradores nos novos territórios – houve um foco mais virado para a questão do alojamento

No levantamento de necessidades do PER e do realojamento a seguir não foram tomadas em conta situações sociais das famílias, os seus laços de pertença e redes de vizinhança que muitas vezes ajudavam a ultrapassar fragilidades e cimentavam sentimentos fortes de comunidade.

— Diagnóstico das necessidades: grande hiato de tempo ignorou o crescimento das famílias, deixou outras de fora

A evolução das famílias, natural num processo que durou vários anos – e o seu alargamento foi também um aspeto que deveria ter sido salvaguardado nas fases de realojamento, visto que a habitação nalguns casos já não estava adequada ao agregado no momento da entrega.

— Escolha dos locais dos bairros: isolados, sem transportes ou serviços 

As novas construções vinham melhorar as condições de habitação, mas muitas vezes levantaram outras questões à vida das famílias, deslocadas para territórios distantes dos seus hábitos quotidianos, e também pela falta de infraestruturas, tanto em termos de transportes como de serviços. Algumas das localizações em que muitos bairros foram implementados contribuíram para grandes fraturas territoriais, que reforçaram fenómenos de exclusão.

— Falta de tempo / preparação para novos hábitos comportamentais / uso habitacional e formação de comunidade

As novas habitações e os locais onde estavam situadas representaram muitas vezes hábitos de vida completamente diferentes e formas de socialização que tiveram de ser adquiridas «à pressa», especialmente nos casos em que a transição foi mais rápida e não preparada com antecedência.  

— Tipo de construção das habitações / má qualidade infraestrutural, energética

Nalguns casos presentes desde o início, noutros a surgir com o uso e o passar do tempo, os problemas de construção e de manutenção do edificado foram avolumando, diante da falta de uma estratégia consequente de intervenção, aumentada pela falta de recursos municipais. Entre as queixas mais frequentes estão as relacionadas com o isolamento e comportamento térmico dos edifícios.

IV.2 _Presente, o que temos agora como necessidade

«Durante muitos anos, não houve nenhuma conservação e diziam sempre que havia mau uso»

«Os bairros continuam a ser apontados como locais de criminalidade e tráfico»

«Todos apanham por igual» 

«Aqui há de tudo, como noutro lado qualquer»

«Os jovens não conseguem muitas vezes fugir ao estigma»

«São os de meia-idade que estão entre mundos e não conseguem sair da pobreza, caem mais no desemprego»

«Quero que os meus filhos tenham as possibilidades que eu não consegui ter»

«Ainda se diz vou a Lisboa, quando se fala nas saídas do bairro»

«Eu gostava que os meus filhos continuassem a viver em bairros sociais, mas com mais harmonia»

«É pela educação e cidadania que vamos para a frente, mas também pela integração dos bairros na cidade e do cruzamento entre comunidades»

«Quero que os meus filhos conheçam outras realidades»

«só pelo contacto com outras pessoas e outras vivências podemos alargar horizontes»

— Necessidade de Intervenção – manutenção para compensar os anos em que não houve obras – continuação da reabilitação iniciada, passivo de décadas – criação de uma estratégia de manutenção periódica que salvaguarde a atempada intervenção 

Há que prosseguir o esforço começado, considerando tanto o passivo de vários anos em que não houve obras de conservação, como o desgaste natural das estruturas. Para isso, é notória a necessidade de uma estratégia concertada e permanente de deteção e identificação de intervenções necessárias, no edificado e também no espaço público, bem como nas estruturas de serviços à população.  

— Aumento da rede de serviços 

É uma das necessidades sempre referidas, em função não só de diferentes realidades de cada comunidade, mas também de novas perspetivas de desenvolvimento social e de acompanhamento das populações. Um supermercado pode fazer a diferença para as pessoas, quando muitas vezes não têm os transportes com a frequência desejada para se deslocar. Por outro lado, há que pensar nas necessidades de um conjunto de pessoas com mais idade – sabendo-se que os bairros municipais estão – como o resto da cidade – com uma grande percentagem de habitantes isolados e / ou com muita idade. Estas realidades passam igualmente pelo desenho dos espaços público e pela forma de acessibilidade que temos de garantir, de forma cada vez mais universal.

— Apesar das melhorias em diversos campos, há uma falta de ligação / coesão da malha urbana 

Ainda é frequente dizer que se vai a Lisboa quando as pessoas saem dos seus bairros para o centro da cidade, sinal evidente do distanciamento que as condições infraestruturais ainda não conseguiram resolver de forma completa e que implica uma cada vez maior inclusão destes territórios na malha urbana, através de mecanismos urbanísticos e também da intensificação dos processos de desenvolvimento local e envolvimento das pessoas na vida comunitária.

— Imagens preconcebidas que se prolongam no tempo

Em resultado da sua falta de ligação ao contexto circundante, muitos bairros de habitação pública ficaram isolados na sua própria vivência quotidiana e os habitantes a sentir manifestações de preconceito, ainda mais relevantes quando envolvem serviços e entidades públicas que deveriam zelar pelo tratamento igualitário de todas as pessoas e proteger os direitos dos cidadãos. Esta mudança implica um trabalho continuado e processos de formação e consciencialização a que todas e todos devem ser chamados.   

— Necessidade do reforço de estratégias para quebrar ciclos de pobreza / a geração com futuro

Idades diferentes tem necessidades e vivem realidades também diferentes. As faixas mais idosas precisam de uma atenção específica – até porque a pandemia veio para muitas representar um défice nas condições de mobilidade, mas também nos circuitos de socialização familiar. Há ainda que notar que a pressão do atual contexto socioeconómico se exerce mais por elementos na geração dos 40-50, que estão numa faixa limite entre modos de vida e inserção profissional e que vêm as suas possibilidades reduzidas no mercado de trabalho atual. Entre os mais jovens, há que acautelar as possibilidades de formação, para que tenham os instrumentos para «terem a vida que nós, pais, não conseguimos ter». É aqui fundamental o acompanhamento das famílias, o reforço do trabalho das entidades de base local e de moradores que possam intervir territorialmente e fazer intermediação com as instituições autárquicas e nacionais.  

V _
O que queremos ter no futuro: Propostas

O que queremos para a cidade? Em conclusão do diagnóstico, tanto dos processos passados, como das realidades ainda presentes, há que pensar de forma articulada entre as questões sociais e infraestruturais, nomeadamente: 

— Acautelar a qualidade da construção, nomeadamente em relação às questões energéticas, de acessibilidade e de qualidade do espaço público

No que toca ao tipo de construção que precisamos de desenvolver, há desde logo envolver nesta equação elementos que estavam em falta – e em que temos já alguns exemplos de experimentação com resultados positivos – em termos de qualidade de isolamento, do comportamento energético dos materiais, bem como das condições de acessibilidades tanto em partes comuns como dentro das casas. É também necessário ter em conta as redes de estruturas – de transportes, educativas, de apoio social e de comércio.

— Pensar em políticas de habitat e desenho de cidade integradas, transportes, serviços, comércio, tecido urbano e social

Mais do que um conjunto de casas, ou de bairros, a cidade precisa de ser cada mais vez integrada, planeada nas suas diversas dimensões, pensadas à escala das pessoas e das suas necessidades, tendo em vista o desenvolvimento dos territórios de uma forma harmoniosa e salvaguardando as suas especificidades, bem como reduzindo venerabilidades, de forma a ter uma comunidade cada vez mais coesa e aberta à diversidade. 

— Incentivar os modelos de participação – cohdecisão especialmente para os que estão histórica e socialmente mais excluídos ou à margem

São fundamentais, neste ponto, pela capacidade que já demonstraram de intervir localmente de forma representativa dos interesses e vontades das populações e de construir soluções para o seu desenvolvimento, os modelos de participação e codecisão. Ainda mais relevantes no que toca à capacidade de dar voz e forças as necessidades específicas das comunidades socialmente à margem ou excluídas dos roteiros mais comuns, pela sua localização periférica do centro. Reforçando os veículos de diálogo e comunicação com as comunidades e os moradores, numa contínua transparência de processos, bem como das formas de análise de situações numa perspetiva de inclusão e coesão. 

— Valorizar e incluir as associações de base local nos processos

São cada vez mais notórias nas comunidades as presenças de muitas entidades de base local que promovem iniciativas, que juntam pessoas à volta de diferentes assuntos, que levantam questões e procuram as respetivas soluções. Este trabalho precisa de ser reconhecido e ter continuidade nos processos e mecanismos de codecisão que começaram a ser implantados nas cidades. 

— Ter em consideração os laços de vizinhança, raízes, “Chamar as pessoas pelos nomes”, evitar problemas de solidão dos mais idosos

É uma questão central, e que se avoluma um pouco por toda a cidade, mas que em certos locais se denota mais pela fragilidade das situações individuais e pelo corte de raízes, em diferentes fases do processo de vida. A população envelhecida está a crescer e ter em conta essa realidade passa pelo reforço das relações de inserção na comunidade, tanto por parte dos serviços mas também pelos laços de vizinhança, que se revelaram fundamentais no período pandémico para muitas pessoas, doentes ou não. 

— Acompanhar a transição para o realojamento, tendo em conta as dinâmicas da comunidade

Foi uma questão que em muitas vozes se sente ainda por resolve e um alerta deixado para futuros processos de realojamento que sejam necessários na dinâmica urbana. É preciso acompanhar a transição de territórios num processo de realojamento, acautelando as dinâmicas entre as pessoas, as suas ligações com as redes locais, os seus elos de vizinhança, para não deixar sem rede os agregados – muitas vezes dependentes destas malhas de convivência e suporte no seu dia-a-dia, tanto para questões muito práticas – cuidar dos filhos, numa situação de emergência, entre outras questões – como de isolamento das pessoas mais idosas, por exemplo.

— Ter em conta a questão da mobilidade e serviços, investir em novos modelos de cidade e evitar novos fatores de guetização

Pensar uma cidade e habitação para todas as pessoas com acessibilidade pedonal e de transportes, com ligação rápida a serviços e equipamentos de saúde, escolares, etc, zonas verdes e de lazer. Respeitar a necessidade de ter parâmetros de densidade habitacional saudáveis e equilibrados, sem fomentar o aumento desta concentração em zonas já de si muito causticadas. Evitando, nesta conjugação, a criação de ilhas inacessíveis nas periferias da cidade, caracterizadas pela falta de diversidade socioeconómica que aumenta a segregação territorial e manutenção de ciclos de pobreza, mas antes pelo contrário promovendo os mecanismos para a circulação de pessoas e construção de comunidades diversas e representativas da diversidade numa cidade coesa e com igualdade de oportunidades.

Para tudo isto é necessário construir de início com todos os interessados:

1) Continuar a desenvolver processos de participação e formas efetivas de codecisão em matérias do desenho da cidade e habitação;

2) Envolver grupos comunitários e outras entidades de base local de forma ativa nestes processos;

3) Considerar na Carta Municipal da Habitação as preocupações de moradores na avaliação / discussão do PER, nomeadamente as diversas alíneas desta carta aberta – manifesto.