Colina #1 | Catarina Domingues

A ciclovia como símbolo da liberdade

Por Catarina Domingues


O que mais divide os lisboetas? Ser do Benfica ou do Sporting? A manutenção ou não da calçada portuguesa? Onde se comem os melhores pastéis de nata? Diria que são as ciclovias. Nunca vi um assunto ser discutido com tanto fervor. Às vezes com tal intensidade que aparentemente o fim do mundo ocorrerá com bicicletas em ciclovias.

Grande parte dos comentários contra as ciclovias habitualmente trazem-me alívio e felicidade, pois demonstram que alguns problemas afinal não existem. Há uns tempos li um artigo que afirmava que as ciclovias colocavam em risco a igualdade de género, fiquei feliz por descobrir que já temos salários iguais para trabalhos iguais ou que as tarefas domésticas e responsabilidades com os filhos já se encontram devidamente divididas e que o problema afinal resume-se às ciclovias, essas grandes inimigas do sexo feminino. Tenho, igualmente, descoberto que os carros não passam vermelhos, nem estacionam nos passeios, comportamentos que só ocorrem com as bicicletas. Também costumam chamar-me de moderna (ok, este é até um dos adjetivos mais simpáticos que ouço neste âmbito) por andar de bicicleta. Porém, trata-se de um transporte, pelo menos com o design parecido ao modelo atual, que existe desde o século XIX.

Bem, mas se há algo que aprendi da história do referendo do Chile em 1988, nomeadamente da sua campanha, é que mais vale o foco ser no positivo e não no negativo. Logo, não vou falar do domínio do carro em Lisboa e todo o planeamento da cidade ter como base esse meio de transporte (“oops, parece que voltei a ser negativa”).

Não sei que idade tinha quando aprendi a andar de bicicleta, só sei que era uma Vilar Catita azul metalizada, com as míticas (e hoje já não usadas) rodinhas, que tinha herdado do meu irmão. Desde muito nova a bicicleta para mim simbolizou liberdade, o ato de poder deslocar-me para onde queria sem depender de ninguém.

Sou utilizadora diária das Gira, o sistema partilhado de bicicletas de Lisboa, desde o início de 2018. Recordo-me de chegar às docas e não conseguir estacionar por estarem cheias de bicicletas, hoje o problema (dores de crescimento) é o contrário, às vezes faltam bicicletas. Também nesse primeiro ano de utilização era constantemente questionada por quem passava (às vezes até de carro) como funcionava o sistema.

O meu uso, como já referi, é diário e para todo o lado, trabalho, ir ao cinema, sair à noite…. O andar de bicicleta permite, como o andar a pé, um olhar mais atento da cidade, ver melhor os seus prédios, as suas cores e até as suas gentes. Apercebo-me de dois irmãos, com idades entre os 10 e 12 anos, que sozinhos vão nas suas bicicletas muito concentrados e cumprindo sem falhas as regras de trânsito. Apercebo-me das pessoas que levam os filhos à escola de bicicleta – nas cadeirinhas ou nos atrelados – ou acompanham os mesmos que já vão na sua própria bicicleta. Apercebo-me das rotinas diárias de muitas pessoas que vejo nos passeios. Apercebo-me daqueles, em especial as mulheres, que estão nas paragens de autocarros muito cedo… ou melhor muito cedo para mim, pois para alguns deles o dia ainda só vai a meio.

E falando em mobilidade, tenho notado nos últimos tempos um facto que nunca tinha pensado: o uso das ciclovias pelas pessoas de mobilidade reduzida. Tenho-me cruzado diariamente na Avenida da República (uma das avenidas que percorro diariamente conjuntamente com as Avenidas Duque de Ávila e Almirante Reis) com um senhor a usar a ciclovia de cadeira de rodas. Em tempos fui também fazer um passeio de bicicleta e no fim encontrei um rapaz a ver a paisagem. Passado uns momentos foi-se embora usando a ciclovia, nessa altura apercebi-me como era impensável a chegada dele aquele lugar de forma autónoma se não fosse a ciclovia. Assim, as ciclovias, ao contrário do que muitas vezes nos acusam, levam-nos a refletir sobre realidades que não são as nossas, porque nos tornam mais atentos e observadores. Pensar que são essenciais melhores transportes públicos e melhores acessos para pessoas de mobilidade reduzida. Enfim, devolver a cidade às pessoas, fazendo as ciclovias parte essencial desse plano.

Vou acabar com uma nota final e um pedido.

A nota final é que infelizmente ainda se veem poucas mulheres de bicicleta, em especial da minha faixa etária, e a razão parece-me ser pelo facto do 25 de abril e as suas conquistas, nomeadamente para as mulheres, ainda não ter chegado totalmente às famílias portuguesas e grande parte das tarefas domésticas e responsabilidade com os filhos ainda ser unicamente ou em grande parte responsabilidade das mulheres.

O pedido é que tente um dia ir de bicicleta para o trabalho ou para um passeio e depois diga como correu, acho que vai gostar (afinal tem todas as vantagens que normalmente se fala: saúde — tanto física como mental — melhor ambiente e deslocações mais rápidas na cidade). E prometo que não vai estranhar as ciclovias, pois apresentam fenómenos similares aos que ocorrem nas estradas, por exemplo horas de ponta e os condutores de domingo. ◼️