Agendada: 140ª reunião, 9 de Maio de 2017
Debatida e votada: 9 de Maio de 2017
Resultado da Votação: Aprovada por unanimidade
Passou a Deliberação: 142/AML/2017
Publicação em BM: Suplemento ao BM nº 1220
Lisboa e as novas políticas culturais – criação do Prémio Espinosa
“O universal é o local sem muros” – Miguel Torga
1. A “cultura” deixou de ser um extra económico para se transformar no núcleo central da economia. A questão política da criação artística já não é a da luta contra o compromisso. Já não está em jogo saber em que medida a sobrevivência das actividades criativas implica a sua subordinação aos mercados da arte e às lógicas da museologização. O investimento crescente nas artes e nas actividades culturais permite perceber outra coisa. É que a euforia em torno da criação de museus, fundações, cursos de curadoria, revela uma nova forma de economia. Estamos perante a “economia do enriquecimento”, como lhe chamaram os sociólogos Luc Boltanski e Arnaud Esquerre.
2. Nesta economia do enriquecimento, a cultura, tomada em sentido amplo, sai da sua reserva de experiência crítica e de exercício de juízos de gosto para entrar no universo do comércio. O valor aumentado depende portanto de novos vínculos que ligam património, luxo, arte e turismo. Para além de ser um dispositivo que dissolve a autonomia criativa ou crítica da arte, é um regime novo de produção de valor.
3. No momento em que se dissolvem as fronteiras nacionais e o poder se mundializa, as cidades transformam-se nos grandes laboratórios de pesquisa e análise crítica dos fenómenos sociais, económicos e artísticos. E são também as cidades que assumem os grandes mecanismos de reinvenção da produção e do consumo. É à escala das cidades, na sua articulação directa com a escala do global, que surgem novos bens e novos patrimónios, sobretudo imateriais.
4. No sec. XVII, os pais de Bento Espinosa foram expulsos da vila da Vidigueira, e com eles toda a comunidade judaica que aí habitava. Espinosa nasceu e foi criado em Amsterdão. Talvez pela sua biografia de refugiado Espinosa tenha sido o primeiro a formular um conceito que se tornou hoje fundamental – o conceito de “multidão”, retomado actualmente sobretudo pela obra do filósofo italiano Toni Negri. Ao contrário do conceito de “povo” ou de “nação”, “multidão” define melhor a realidade das novas subjectividades políticas. Comunidades compostas por diferenças não redutíveis ou por singularidades, que participam – em redes que tanto podem ser locais como imediatamente globais – naquilo a que se chama o “capitalismo cognitivo” (uma economia do conhecimento, dos afectos e da cooperação).
5. É essa experiência de uma economia da multidão que impede que a produção inovadora e criativa do imaterial seja imediatamente apropriada segundo a lógica do turismo, do enriquecimento e do luxo. Isso passa por retomar um conceito antigo do direito romano, o conceito de “comum”. Entre a propriedade privada e a propriedade gerida pelas instituições, os romanos tinham reconhecido a propriedade comum. O comum era então sobretudo composto pelos pastos agrícolas e pelos baldios urbanos. Hoje o “comum” é também o nome daquilo que se constrói na interacção e na cooperação entre as singularidades que compõem a multidão. O “comum” não é o fundamento da comunidade multitudinária, é o resultado dessa outra produção política que é a multidão.
6. A nova tarefa que se abre à organização das cidades é a de respeitar a economia do comum que se vai inventando como resistência à economia do enriquecimento. E aí os orçamentos para a cultura são decisivos.
7. A Câmara Municipal de Lisboa não pode deixar de continuar a financiar as actividades culturais segundo o modelo da economia do enriquecimento. O turismo crescente e a captação de investimentos imobiliários, por um lado, e, por outro, uma enorme comunidade de artistas, produtores e curadores que dependem, directa ou indirectamente, de apoios municipais, obrigam a Câmara a comprometer grande parte do seu orçamento com as rotinas milionárias das actividades culturais. Mas estamos num momento de viragem na compreensão do que podemos mudar nas lógicas de financiamento das artes e das comunidades criativas.
8. Lisboa tem condições únicas para se transformar num laboratório feliz da economia do comum e da produção artística crítica. As experiências da Fábrica do Braço de Prata, da LXFactory, a recuperação dos Bairros da Mouraria ou da Boavista, o regime dos orçamentos participativos ou os projectos Bip-Zip fazem de Lisboa uma cidade de vanguarda na produção de formas cooperativas de criação e sustentabilidade.
9. Apoiar essas experiências é dar um sinal político claro da rejeição do modelo da economia do enriquecimento. Mas é tempo de resgatar para o nosso património actual a herança desses judeus alentejanos, refugiados nos Países Baixos no sec.XVII. O refugiado Bento Espinosa é hoje em todo o mundo o emblema da nova realidade social e política que designamos por “multidão”. A partir de um materialismo panteísta, ele opôs à ideia de propriedade (privada ou pública) a experiência do uso, do uso daquilo que é de todos, do que é comum, e fez desse comum a materialização de uma ideia de comunidade não fundada nem no comércio nem na comunicação. E nada de mais comum do que o património material e imaterial de uma cidade.
10. Para tornar visível essa nova orientação das políticas culturais de Lisboa, está na altura de construir no Panteão um túmulo dedicado a Espinosa. Trazer de novo para Portugal esse refugiado na forma de um túmulo vazio – tão vazio como os túmulos de Pedro Álvares Cabral ou de Vasco de Gama. Mas, no caso de Espinosa, não estaríamos a ludibriar ninguém. Seria a afirmação do carácter universal da forma-refugiado, a partir da cidade onde a Inquisição decidiu a expulsão da família judaica no seio da qual nasceria o primeiro pensador de uma ética da imanência, fundada numa psicologia dos encontros felizes.
11. Em paralelo, Lisboa poderia criar um prémio com o nome de Espinosa. Seria atribuído anualmente a uma figura, independentemente da sua nacionalidade, que se tivesse destacado na criação de formas alternativas de economia – tanto na esfera prática como no domínio do pensamento político e ético. Em Portugal há uma longa tradição de atribuição de prémios a figuras que se singularizam pela sua actividade nas artes, nas ciências, ou simplesmente na sua vida cívica. Mas, até hoje, não foi criado nenhum prémio no domínio do pensamento político ou do pensamento ético. Neste caso, seria um prémio que reconhecesse os contributos para compreender e minorar os horrores da vida dos milhares e milhares de refugiados que, todos os anos, agravam a iniquidade dos nossos mapas geopolíticos.
12. Ao contrapor o modelo de uma economia do comum à economia do enriquecimento na esfera das actividades culturais, Lisboa pode redimir-se daquela expulsão. E quase 400 anos depois, pelo Prémio Espinosa, pode dar a conhecer ao mundo a vontade de ser uma cidade de referência nas artes e nas formas de cidadania.
Assim, os Deputados Independentes, e através deles o Movimento Cidadãos por Lisboa em que se integram, vêm por isso propor ao plenário da Assembleia Municipal que delibere:
A. Propor à Assembleia da República que seja erguido no Panteão Nacional um túmulo destinado a Espinosa, nele honrando simbolicamente não apenas um dos maiores pensadores de todos os tempos, que só não nasceu em Portugal porque os seus pais foram daqui expulsos pela Inquisição, mas também a afirmação, a partir de Lisboa, do carácter universal da forma-refugiado.
B. Mandatar a mesa da Assembleia para, em colaboração com o pelouro da cultura da Câmara Municipal, promover a criação do Prémio Espinosa, com montante a assegurar no orçamento municipal, como forma de resgatar para Portugal o património político e ético daquele filho de judeus da Vidigueira que no século XVII foram obrigados a procurar refúgio em Amsterdão.
Lisboa, 5 de maio de 2017
Os Deputado Independentes